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domingo, 16 de abril de 2017

A menina dos fósforos, tradução de Monteiro Lobato

A menina dos fósforos (Monteiro Lobato)

            Isto foi num desses países onde a neve cai durante o tempo de inverno – e fazia um horrível frio naquela noite do ano. Dentro do frio e dentro do escuro da noite a menina lá seguia, de pés descalços pela cidade deserta. Descalço? Sim. É verdade que saíra de casa com um par de chinelos muito grandes para seus pés, pois tinham sido de sua mãe. Ao atravessar a rua, porém, teve de correr para desviar-se duma carruagem na disparada, e perdeu os chinelos; quando voltou para procurá-los, viu que um moleque havia apanhado um pé, saindo a correr com ele na mão. “Vou fazer um berço deste chinelo!”, dizia ele. O outro pé não foi possível encontrar - com certeza sumiu enterrado na neve pelas patas dos cavalos. Por isso, lá ia a menina de pés nus e já azuis de frio. Era uma vendedora de fósforos, do tempo em que os fósforos se vendiam soltos e não em caixa; no avental trazia uma porção deles e na mão um punhadinho. Mas ninguém lhe comprara ainda um só, e lá se ia ela, tiritando de frio, sem um vintém no bolso. Verdadeiro retrato da miséria, a coitadinha!
             Flocos de neve recobriam seus cabelos cor de ouro, todos cacheados, sem que a menina desse por isso. Em muitas casas a luz do interior saía pelas janelas, misturada com um saboroso cheiro de ganso assado – porque era dia de São Silvestre, dia em que todos que podem comem um ganso assado. Em certo ponto a menina sentou-se encolhidinha rente a uma parede e cruzou os pés debaixo da saia. Nada adiantou. Sentiu-se mais enregelados ainda. Como não tivesse vendido nenhum fósforo, não se animava a voltar para casa. Sem dinheiro no bolso estava proibida de aparecer lá. Seu pai com certeza a surraria – além disso, o frio era lá tanto como ali. Uma casa velha, de teto esburacado e paredes rachadas por onde o vento entrava zunindo. Suas mãozinhas começaram a perder os movimentos. Teve uma ideia: acender um daqueles fósforos para aquecer os dedos entanguidos. Assim fez. Riscou um fósforo na parede – chit! Que luz bonita e que agradável quentura!
            O fósforo queimava qual velinha, com a chama defendida do vento pela sua mão em concha. Que bom! A menina sentia como se estivesse sentada diante dum grande fogão, com ferro para mexer as brasas e uma caixa de lenha ao lado. Tão agradável aquele calorzinho do fósforo, que ela espichou o pé para que também aproveitasse um pouco, mas nisto a chama foi morrendo e afinal apagou-se. Só ficou em sua mão um toquinho carbonizado.
             A menina riscou outro fósforo, e à luz dele, a parede da casa onde estava encostada tornou-se transparente como um véu, deixando ver tudo que se passava lá dentro. Estava posta uma grande mesa, com toalha alvíssima e prataria de porcelana; no centro, um ganso recheado de maçãs e ameixas, que recendia um perfume delicioso. De repente, o ganso ergueu-se da travessa e, ainda com a faca e o garfo de trinchar espetados no papo, veio na direção dela. Nisto o fósforo apagou-se e tudo desapareceu. A menina riscou outro fósforo, e imediatamente se achou sentada debaixo da mais bela árvore, onde  da ponta dos galhos,  os enfeites dependurados pareciam olhar para ela.
            Mas esse fósforo também foi se apagando, e à medida que ia se apagando, a árvore de Natal ia crescendo, e as velinhas subindo até ficarem como estrelas no céu. Uma delas caiu, traçando um longo risco de luz. - Alguém está morrendo, pensou a menina com a ideia em sua avó. A boa velhinha fora a única pessoa na vida que lhe dera amor, e costumava dizer que quando uma estrela cai, é sinal de que alguém está morrendo e com a alma a ir para o céu.
            A menina acendeu outro fósforo – e desta vez o que apareceu foi sua própria vovó, brilhante como um espírito e com o mesmo olhar meigo de sempre. - Vovó! Exclamou ela. Leve-me consigo! Eu sei que a senhora vai sumir-se quando este fósforo chegar ao fim, como aconteceu com o ganso recheado e a linda árvore de Natal...
            E para que isso não acontecesse, a menina tratou de acender um fósforo atrás do outro, sem esperar que a chama morresse. Era o meio de conservar a vovó perto de si. E os fósforos foram ardendo com luz brilhante como a do dia, e sua vovó nunca lhe apareceu tão bela, nem tão grande. Foi-se chegando, tomou e netinha nos braços e com ela voou, radiante, para onde não há neve, nem frio mortal, nem fome, nem cuidados – para o céu.
            No outro dia encontraram o corpo da menina estendido na calçada, com as faces roxas e um sorriso feliz nos lábios. Havia morrido de fome e frio na última noite daquele dezembro. O sol do novo ano veio brincar sobre o pequenino cadáver. Em sua mãozinha rígida estavam ainda os fósforos que não tivera tempo de acender. Os passantes olhavam e diziam: “A coitada procurou aquecer-se com os fósforos”. Mas ninguém suspeitou as lindas coisas que ela viu, nem o deslumbramento com que começou o ano novo em companhia de sua avó.                             ( O texto original é de Hans C. Andersen)


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